O discurso da legitimidade
“Preguntan de donde soy
y no sé qué responder.
De tanto no tener nada,
No tengo de adonde ser.”
E como perguntam, neste Rio Grande de Deus! De onde és? Bagé? Alegrete? Paleteias, laças, tranças? Leste estes ou aqueles textos, para mim fundamentais? Perguntas. Nem sempre foi assim…
Numa terra onde a instituição era tão rara e rala; onde o ilícito das atividades e o partidarismo das guerras poderiam criar constrangimentos e sobretudo onde sempre se precisava de algum braço destro… é assunto sabido que quem chegasse em qualquer galpão era bem recebido, comia, tomava mate e trago, se provisionava de alguma coisa; mudava cavalo, secava roupa e aperos. Sem perguntas.
Gosto particularmente de lembrar de algo que meu pai deixou escrito, sobre o fascínio que o cheiro de fogo exercia sobre ele (e que também sempre senti, sem fazer a associação, por falta da experiência): isso lhe vinha dos tempos de viajar só a cavalo, guri, cansado, sem recursos, às vezes molhado, voltando de entregar uma vacagem ou andando de escoteiro, mesmo. O cheiro do fogo era conforto, bóia, trago, conversa, quem sabe o flerte de alguma guriazinha…
Hoje, essa identidade gaúcha, emocionar-se com ela e cultivar os traços que a fazem ser identificável – os “sinais diacríticos” da Antropologia – passa por uma pergunta, lamentavelmente insistente: “tu podes ser gaúcho?” Subentendido aí “…sendo quem és?”
E aí eu morro de inveja dos negros e dos meus bisnetos. Os negros, empapados do justo orgulho por suas raízes, mas livres de maiores rigores porque essas, as raízes, estão do outro lado de um oceano, originalmente; mais tarde, na escravidão brasileira, localizadas num tempo muito distinto e, portanto, distante.
Os negros, que saem vestindo motivos “tribais” e não são inquiridos sobre sua verossimilhança, sobre essas tribos ou o significado ou mesmo existência daqueles desenhos… Que criam roupas que constroem o afroamericano, referências musicais, culinárias ou linguísticas com a liberdade que não teriam para isso se a fonte desse universo simbólico estivesse logo ali, quer no tempo, quer no espaço.
Nós, gaúchos, de história jovem e cultura resistente, temos sempre um congênere a nos inquirir: “pois é, mas a faca que meu pai usava não era assim…” “Nunca vi essa encilha no campo do meu tio, onde eu passava as férias” (e é um capítulo à parte o que se poderia chamar gauchismo escolar, tamanha a quantidade de gaúchos, inclusive entre os melhores da literatura e da música, cuja referência campeira são as viagens de férias).
O campo é ao lado das nossas cidades e há muita tradição remanescente ou recuperada nele. Além disso, há duas, três gerações, em nossas próprias famílias, sempre houve alguém que viveu ou testemunhou a forma que consideramos a que identificava um “verdadeiro gaúcho”.
Os meus bisnetos, que inveja, poderão viver toda a identidade gaúcha depurada desse discurso de legitimidade, dessa disseminada pretensão de sentenciar: “esse é genuíno, esse não”, dessa forma possessiva de amor e pertencimento que tem nos caracterizado. Porque só a distância no tempo e no espaço, lamentavelmente, nos autorizará a sermos gaúchos como um cigano é cigano: afirmando esse ser com naturalidade e orgulho, sem necessariamente tocar violino, viver em um comboio, ler a sorte ou usar esse ou aquele adereço.
A liberdade de pertencer a uma etnia, sem testes, provas, controles e aferições. Como os negros. Sem perguntas sobre procedência, conhecimentos específicos de trabalhos, pelagens, vocabulário. Ou como dizia aquele mesmo Atahualpa Yupanqui, da epígrafe aí em cima, pensando no lugar onde gostaria de chegar um dia: donde nadie me pregunte de ande vengo y p’ande voy.
Artigo do músico Demétrio Xavier, violonista e cantor porto-alegrense, especializado na pesquisa e interpretação da música crioula uruguaia e argentina, há 25 anos. Compositor eventual, venceu ao lado de Marco Aurélio Vasconcelos, a Califórnia da Canção Nativa de 2009, com a composição "A Sanga do Pedro Lira". Publicado originalmente na seção Fórumdo CTG Inhanduí, de Porto Alegre.
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