Boletim AS-PTA
Tempos de grandes revelações: após encerrarmos 2010 com notícias acerca do envolvimento de advogada da Monsanto na elaboração de Projeto de Lei assinado pelo líder do governo, deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP), propondo a liberação de sementes estéreis no Brasil, o Ano Novo chega com importantes esclarecimentos sobre o papel do governo estadunidense nos processos envolvendo a liberação de transgênicos além de suas fronteiras.
Nesta segunda-feira (3), o jornal inglês The Guardian divulgou despachos diplomáticos dos EUA tornados públicos pelo site WikiLeaks. Os documentos dão conta, por exemplo, de orientações ao governo americano para que iniciasse retaliações “ao estilo militar” em resposta à proibição da França ao cultivo do milho transgênico Bt MON810, da Monsanto, em 2007.
“Partir para a retaliação tornará claro que o caminho atual [de veto aos transgênicos] tem custos reais aos interesses da UE e poderia ajudar a fortalecer as vozes europeias pró-biotecnologia. De fato, o lado pró-biotecnologia da França -- inclusive dentro do sindicato rural -- nos disse que a retaliação é o único caminho para começar a mudar esta questão na França”, diz o documento assinado por Craig Stapleton, embaixador em Paris e também amigo e parceiro de negócios do ex-presidente George Bush.
Algumas partes do documento evidenciam o desprezo da diplomacia norteamericana em relação às questões ambientais, considerando prejudicial o comprometimento com o Princípio da Preocupação:
“Um dos resultados chave do ‘Grenelle’ [uma mesa redonda ambiental promovida pelo governo francês] foi a decisão de suspender o cultivo do milho MON810 na França. Tão prejudicial quanto isso é o aparente comprometimento do governo da França com o ‘princípio da precaução”. Por aqui, à época da dessa decisão, sentenciavam o mesmo o ex-presidente da CTNBio, e o atual, ao falarem em “princípio da obstrução”.
Outros trechos do documento mostram claramente o empenho do governo dos EUA em defender os interesses de suas multinacionais do agronegócio:
“Tanto o governo da França como a Comissão [Europeia] sugeriram que suas respectivas ações não deveriam nos alarmar, uma vez que proíbem apenas o cultivo e não a importação [de transgênicos]. Nós vemos a proibição ao cultivo como um primeiro passo, ao menos para as lideranças anti-transgênicos, que em breve buscarão a proibição ou maiores restrições às importações. (...) Além disso, não deveríamos estar preparados para ceder no cultivo por causa do nosso considerável negócio de sementes na Europa (...)”.
Importante esclarecer que este “nosso” negócio de sementes na Europa é, em verdade, o negócio das múltis, em especial a Monsanto.
A recomendação do embaixador ao governo estadunidense não deixa margem para dúvidas com relação à maneira “científica” com a qual é tratada a questão da adoção da biotecnologia na agricultura:
“A equipe dos EUA em Paris recomenda que calibremos uma lista de alvos para retaliação que cause alguma dor através da União Europeia, uma vez que se trata de uma responsabilidade coletiva, mas que também foque em parte nos principais culpados. A lista deve ser bem avaliada e sustentável no longo prazo, já que não esperamos uma vitória imediata”.
Outros documentos vazados pelo WikiLeaks revelam a atuação da diplomacia estadunidense sobre transgênicos junto à Espanha, que cumpre papel oposto ao da França na Europa: trata-se do único país do bloco a cultivar transgênicos comercialmente -- justamente o milho Bt MON810, proibido pela França, Alemanha, Áustria, Hungria, Grécia e Luxemburgo.
O documento revelado explica o contexto de ameaça ao cultivo de transgênicos na Espanha, conforme ilustra o trecho abaixo:
“O cultivo do milho MON810 na Espanha está ameaçado por uma emergente e bem coordenada campanha para proibir o cultivo de variedades transgênicas na Europa, segundo fontes da indústria. A campanha ganhou força e velocidade nos meses recentes com a decisão da Alemanha em 14 de abril de proibir o cultivo do MON810 - que seguiu um voto da UE apoiando a manutenção da proibição na Áustria e na Hungria. Legislação que ameaça o cultivo do MON810 também foi recentemente introduzida nos parlamentos regionais do País Basco e da Catalunha.”
Ao final, a orientação ao governo dos EUA:
“A equipe solicita renovação de apoio do Governo dos EUA à posição da Espanha a favor da biotecnologia agrícola baseada na ciência (sic) através de intervenção de alto nível do Governo dos EUA em apoio às conclusões da EFSA [Autoridade Europeia de Segurança Alimentar, que em 2008 declarou não haver descoberto novas evidências de risco com relação ao milho MON810]. A equipe solicita ainda o apoio do Governo dos EUA através de um cientista que não pertença ao governo dos EUA para se encontrar com interlocutores da Espanha influentes sobre a questão e assistência no desenvolvimento de um plano de ação para a biotecnologia agrícola para a Espanha.”
Segundo a matéria do Guardian, os despachos mostram ainda que, além de o governo espanhol ter pedido ajuda aos EUA para manter pressões sobre Bruxelas, os EUA sabiam previamente como a Espanha votaria na Comissão Europeia, mesmo antes de a comissão de biotecnologia da Espanha haver anunciado sua posição.
Como se não bastasse tudo isso, os documentos revelados pelo WikiLeaks mostram também a pressão do governo americano sobre o Vaticano em busca de manifestações de apoio aos transgênicos.
Segundo os informes, os EUA acreditam que o Papa tornou-se fortemente favorável aos transgênicos após longo trabalho de lobby sobre seus assessores, mas lamenta que este apoio ainda não tenha sido manifestado publicamente. “Existem oportunidades para pressionar o Vaticano sobre o tema, e assim influenciar um amplo segmento da população na Europa e no mundo em desenvolvimento”, diz um dos documentos.
Mas a embaixada dos EUA no Vaticano acredita que seu maior aliado sobre o tema na Igreja, o Cardeal Renato Martino, chefe do Conselho Pontifício Justiça e Paz e o principal homem a representar o Papa na ONU, tenha desistido do apoio:
“Um representante de Martino disse-nos recentemente que o cardeal havia cooperado com a embaixada no Vaticano sobre a biotecnologia nos últimos dois anos para compensar suas declarações de desaprovação à guerra do Iraque e suas consequências - para manter as relações com o Governo dos EUA afáveis”, diz o documento.
Vale relembrar aqui (e estabelecer alguma relação?) a notícia divulgada mundialmente em novembro último de que a Academia de Ciências do Vaticano havia se posicionado a favor do uso de transgênicos (EFE). O apoio teria sido manifestado através da publicação de um informe na revista New Biotechnology.
Pouco dias depois da disseminação da notícia pelo mundo o Vaticano publicou um desmentido, dizendo que a Declaração Final da Semana de Estudo sobre “Planta transgênicas para a Segurança Alimentar no Contexto do Desenvolvimento”, patrocinado pela Pontifícia Academia das Ciências, não podia ser considerada como uma posição oficial do Vaticano sobre este tema. Segundo o sacerdote, “a declaração não deve ser considerada como declaração oficial da Academia Pontifícia das Ciências, que tem 80 membros, já que a Academia, como tal, não foi consultada a respeito, nem está em projeto tal consulta”.
Curiosamente (ou não), o desmentido não teve a mesma repercussão na imprensa (o site do CIB - Conselho Informações sobre Biotecnologia, ONG de promoção dos transgênicos patrocinada pelas empresas do ramo, mantém até hoje em seu site a notícia de que o “Vaticano deu luz verde para os transgênicos”).
Todas essas informações são importantes para eliminar qualquer dúvida sobre a maneira política -- e não científica -- com que são tomadas as decisões sobre transgênicos, não só no Brasil, mas em todo o mundo. Os documentos vazados pelo WikiLeaks evidenciam que a disseminação dos transgênicos pelo planeta se trata de uma estratégia comercial prioritária para governo americano, para a qual é mobilizado, inclusive, o alto escalão da diplomacia.
Nesse jogo, cientistas também são mobilizados, alugando aos interessados a legitimidade conferida por seus diplomas para influenciar a opinião pública e tomadores de decisão.
Mais ainda, os documentos revelados deixam claro, mais uma vez, que o governo estadunidense está nas mãos das grandes multinacionais: interesses comerciais privados são tratados e defendidos como interesses de estado, com tal prioridade que até retaliações de alto impacto são deslanchadas.
Com informações de:
The Guardian, 03/01/2011.
Valor Econômico, 04/01/2011
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