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segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Honduras e a luta anti-imperialista

Ronaldo Pagotto, da Consulta Popular, que esteve em Honduras durante 40 dias, analisa o atual cenário político e econômico
 22/09/2010
Nilton Viana
da Redação

“A situação é bastante crítica. Há uma crise econômica profunda que fora agravada pelo golpe civil-militar”. Esta é a avaliação de Ronaldo Pagotto, militante da Consulta Popular que esteve em Honduras durante 40 dias, entre os meses de julho e agosto. Segundo ele, que participou de atividades de solidariedade com organizações populares e com a Frente Nacional de Resistência Popular (FNRP), mesmo passados 13 meses do golpe que depôs o presidente Manuel Zelaya, em 28 de junho de 2009, o povo segue resistindo. “As mobilizações não cessaram, o povo segue se organizando nas ruas, e com um vigor incrível”.

Nesta entrevista ao Brasil de Fato, Pagotto analisa o atual cenário político e econômico de Honduras e afirma: “A ligação de Zelaya com as massas populares é profunda, não se explica somente com elementos objetivos. É algo que ameaça qualquer golpista”.

Brasil de Fato – Você esteve durante 40 dias em Honduras. Qual a avaliação política que faz do país passados mais de um ano do golpe civil-militar?
Ronaldo Pagotto – A situação é bastante crítica. Há uma crise econômica profunda que fora agravada pelo golpe civil-militar. O desemprego é crescente, entre jovens alcança índices alarmantes; o preço dos alimentos sobe e impulsiona o aumento do custo de vida, resultando em fome crônica em grande parte da população. Essa crise econômica é a base das mudanças mais significativas do governo Zelaya, com medidas para combatê-la e desde uma prioridade aos mais pobres. O golpe não só rompe com isso como patrocina um verdadeiro saque às finanças do Estado. Até mesmo o dinheiro oriundo da Alba foi roubado dos cofres!

O governo atual, que é parte do processo do golpe e sua tentativa de legitimação, não passa uma semana sem uma nova crise. Ele é um misto de atabalhoado e um fi el títere dos ditames do Pentágono. Passou meses correndo atrás de situações de emergência, sem resultado algum. Combateu enchentes, e o povo todo sofrendo; a dengue, e os dados oficiais apontam para um volume de casos recorde no país. E o sujeito vestido de caça-mosquitos não perde nem batizado. Qualquer oportunidade de aparecer sorrindo, o sujeito vai. Se chamar para batida de carro, show, copa do mundo, jogo de botão, festa, inauguração da placa da praça então...


O povo hondurenho assimilou o golpe ou ainda tem resistência?
Mesmo passados 13 meses do golpe, as mobilizações não cessaram, o povo segue se organizando nas ruas, e com um vigor incrível. Pude notar uma disposição muito boa. Apesar de já ter passado todo esse tempo e da forte repressão. Mas a resistência segue firme, com boa unidade, trabalho nacional e muito ânimo. A Frente Nacional de Resistência Popular, que reúne todos os setores populares que estão contra o golpe, não nasceu do golpe apenas. É parte de um trabalho de resistência anterior. A coordenação nacional de resistência popular foi organizada em 2003 e é a base da FNRP, o que ajuda a entender como a resistência foi capaz de organizar atos, manifestações, ocupações e outras formas de resistir desde os primeiros momentos do golpe. Nos 40 dias em que por lá estive, conheci e participei de algumas manifestações em um volume incrível. Em dias de semana, é certo que todos tivemos alguma mobilização, seja geral e mais unitária, seja de algum setor – taxistas, professores, indígenas, pequenos camponeses, sem-terra, movimento de mulheres, juventude, funcionários públicos, liberais em resistência e outros.

Agora, no início deste mês, estão concluindo um trabalho de coleta de assinaturas para a convocatória de uma Assembleia Constituinte. Já tinham alcançado mais de 1 milhão no dia 30 de agosto. E preparam uma paralisação nacional para o dia 7. Outra atividade que farão é um grande ato nacional que promete mobilizar centenas de milhares de pessoas no dia 15, data comemorativa da independência com relação a Espanha.

E como tem se comportado os movimentos populares de Honduras?
São a base e estrutura da resistência. E o vigor que aflora nas grandes manifestações é garantido por um trabalho regular e muito consistente nas comunidades, nas ocupações, bairros e demais setores. Podemos afirmar que o golpe acelerou o trabalho popular e dos movimentos. Há um esforço muito claro em articular as lutas específicas com as grandes questões. Todos os temas de lutas pautam as linhas gerais da Resistência Popular [FNRP], com uma unidade entre os movimentos sociais, as centrais de trabalhadores, os professores (que são a maior força organizada). Juntamente com esse impulso, muitas organizações de bairros, de artistas, de jovens em resistência nasceram desse momento de ruptura. Não há controle sobre isso. É um florescer de organizações que reúne pessoas que nunca haviam se mobilizado, mas agora estão nas ruas, usando os muros como tribunas populares e agitando o povo a se mobilizar. Esse clima é geral e muito animador.

Há uma repressão muito forte contra os movimentos contrários ao golpe. O que você pode perceber sobre essa violência?
A repressão é a primeira face do golpe, e podemos dizer que tem momentos distintos. A primeira fase, do golpe à posse do Pepe Lobo [27 dejaneiro] foi de repressão mais ampla nas ruas, sobretudo nas marchas, com sequestros e assassinatos durante os longos períodos de toque de recolher. Nesse período foram mais de 14 mortos e uma centena de exilados. Após a posse, a repressão adota outra estratégia, mais seletiva, combinada com a militarização de regiões de maior conflito, desaparecimento de pessoas e muita tortura e ameaças. E o governo adota a mesma postura desde o golpe: em Honduras não há tortura, não há repressão, não há assassinatos políticos. Parece até que resgataram os manuais das ditaduras sanguinárias da América Latina e não mudam uma vírgula. E há comprovadamente uma operação mais estratégica orquestrada pela CIA e Mossad em identificar lideranças, infiltrar agentes na resistência e promover ações mais contundentes e “cirúrgicas”. Há casos de jovens que já foram presos e torturados mais de dez vezes, mas que seguem na luta.

Você acredita que a atual conjuntura política do país permite um retorno de Zelaya?
Zelaya, conhecido pelo apelido de Mel (contração de Manoel) é uma referência de massas incrível. Seu nome é bradado por todos os setores com a carinhosa frase “Urge, Mel”. Sua volta é uma das bandeiras centrais da unidade da FNRP, e uma ameaça aos golpistas. Só para se ter ideia, durante a estada de Zelaya na Embaixada do Brasil, o povo fez vigília permanente dentro da casa, com mais de 70 pessoas. E, do lado de fora, sempre aos milhares, por vezes eram dezenas de milhares. No dia da sua saída, 27 de janeiro, também da posse de Pepe Lobo, o ato de despedida no aeroporto da capital levou mais de 500 mil pessoas às ruas. A ligação de Zelaya com as massas populares é profunda, não se explica somente com elementos objetivos. É algo que ameaça qualquer golpista.
Sua capacidade de mobilizar as massas, de ser a principal referência e, mesmo após o golpe, continuar demonstrando o compromisso com o povo e as pautas populares que deram razão ao golpe levam os setores golpistas a temerem seu retorno. Isso simboliza que ele é um líder sustentado pelas massas, dispostas a irem até o fim, ao que me parece. Zelaya está exilado na República Dominicana, com restrições para dar entrevistas e manifestar-se nos meios de comunicação, e, sempre que ameaçou voltar, os golpistas respondem que, caso volte, será preso. A resistência tem como um dos pontos a volta do presidente deposto, mas seu conteúdo está nos pontos programáticos de combate à pobreza e enfrentamento com os interesses da oligarquia, das transnacionais e do imperialismo. Diversas lideranças dão sustentação a isso e também se multiplicam no país.

Temos recebido informações sobre vários assassinatos de lideranças, inclusive jornalistas, no país. Isto é verdade? Na sua avaliação, qual o porquê desses assassinatos?
Nesse quadro repressivo, os alvos seletivos preferidos são jornalistas, professores, lideranças de organizações populares e militantes com algum destaque. Nesse ano foram dez jornalistas mortos, e isso explica parte da estratégia dos golpistas: repressão ampla e agora seletiva, medidas circenses do governo e uma mídia que todos os dias repete: em Honduras não se passa nada. Os assassinatos dos jornalistas têm sempre justificativas da imprensa que apoia o golpe. E as explicações variam: ou eram jornalistas com muitos problemas pessoais, ou conjugais, com grupos políticos locais... e, quando nada pode ser dito, usavam o argumento de que foram mortos por grupos de narcotraficantes. E o mais torpe é que, logo no dia seguinte das mortes, os jornais golpistas já tinham as justificativas prontas.

Já que você citou a imprensa, que análise faz do papel da mídia burguesa no país?
A mídia golpista, aliada da oligarquia hondurenha, é muito semelhante ao que temos aqui no Brasil. Nos lembra o comportamento da mídia brasileira no golpe civil-militar. Repetição de imagens boas, tentativa de criminalizar lutas, organizações, e de silenciar ante aos movimentos da resistência. Mas há uma perda gradativa dessa capacidade de construir uma versão dos fatos desde os interesses golpistas.

E a imprensa alternativa, popular; qual tem sido o papel desses meios frente a esse cenário?
A resistência conta com uma ampla gama de rádios comunitárias. Em Honduras, a população, sobretudo do campo, preserva o hábito de ouvir mais rádios do que ver televisão ou ler jornal. Então, essas rádios alcançam todo o território. Também contam com um programa diário, de duas horas, veiculado à noite em uma das rádios mais importantes do país – Globo –, coordenado pela FNRP. Nesse programa se compartilham informes, orientações unitárias, entrevistas gerais com pessoas da FNRP ou internacionalistas. Também falam sobre a agenda da semana e comentam os passos dos golpistas. É um programa organizador do processo. E há um programa diário também de sátira contra os golpistas, de muito boa qualidade, comentando os fatos mais importantes da conjuntura e com uma audiência grande entre os jovens.

O Brasil se mostrou solidário abrigando o presidente deposto e condenou o golpe. Como o povo hondurenho viu essa postura brasileira?
Participei de muitos espaços, debates, estudo, saudações, e, apenas por ser apresentado como brasileiro, gerava uma simpatia incrível. Não foram poucos os que vieram pessoalmente me agradecer pela solidariedade prestada pelo governo brasileiro na figura do presidente Lula ao povo hondurenho e a Zelaya. Queriam saudar, mandar abraços ao povo brasileiro. Na marcha de 18 de agosto, com mais de 70 mil pessoas, a segunda bandeira mais vista era a do Brasil. Isso se combina com uma certa ideia generalizada de que no Brasil tudo está sendo resolvido, não há fome, pobreza. Ou seja, não existiria aqui os problemas que vivem lá. O que é falso. Em alguns debates, quando expusemos o quadro da situação do campo, por exemplo – em que a reforma agrária está paralisada, o enorme incentivo ao agronegócio, o uso recorde de agrotóxicos, monocultivo e o velho problema da pior distribuição de renda do mundo –, não geramos espanto, mas uma certa decepção.

E como acha que serão os desdobramentos e operações dos golpistas nos próximos meses?
Com todo esse quadro de mobilizações, de fortalecimento da unidade popular e incapacidade dos golpistas de assegurarem uma mínima governabilidade, os rumos estão indefinidos. Dependem da capacidade dos dois blocos – golpistas e resistência – em operar uma tática exitosa e forte. Do lado dos golpistas, operam resumidamente buscando neutralizar setores populares estimulando as divisões – embora sem muito sucesso – e cooptar setores com medidas pontuais do governo que resolveriam parte do problema da fome. Além disso, há movimentações do governo para neutralizar o movimento camponês, embora também sem sucesso. Mas seguem com a estratégia. Tudo isto, junto ao pretexto da militarização com a justificativa de combate ao narcotráfico. Honduras é uma região estratégica da logística de distribuição de drogas para os EUA. Esta é a justificativa para duas novas bases militares estadunidenses no país. Também há um esforço para reconhecimento internacional do atual governo, comprometido desde o golpe com o não reconhecimento da OEA, ONU, Unasul e outros.
E há um setor dentro do campo golpista que quer o endurecimento do regime. Quer o fim das liberdades de organização, de imprensa etc. Para derrotar o movimento de massas. Hoje essa alternativa não encontra respaldo, em parte por não contar com o apoio – por enquanto – do Pentágono e também por não ter coesão com um setor da burguesia ligado ao comércio internacional, temendo perder espaço e negócios. Mas não deve ser descartada. E é disso que fala Pepe Lobo, temeroso de ser golpeado pelo seu próprio grupo.

E a resistência, como deve se comportar nos próximos meses?
Por parte da resistência, não temos clareza de quanto tempo mais conseguirão manter as mobilizações e organizações populares. O tempo gera desgaste e, se não são obtidas conquistas e vitórias, pode gerar uma desmobilização. Pode ser ousado dizer, mas a vitória de processos como este depende de ações de desgaste, de demonstração de força e unidade. E também de ações que sejam capazes de reverter a correlação de forças. Honduras é hoje um símbolo da luta antiimperialista e antineoliberal. Lá, os enfrentamentos são com uma oligarquia sanguinária, que atua com apoio dos falcões do Pentágono. Portanto, penso que toda solidariedade é fundamental. Honduras somos todos nós, povos do mundo combatendo o imperialismo, o neoliberalismo, as classes dominantes locais e caminhando para a construção de um outro mundo e da nossa América sonhada por Bolívar, Morazan e Martí.

Ronaldo Pagotto é militante da Consulta Popular e graduado em Direito.

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